terça-feira, 5 de junho de 2012



Harry Callahan não perdoou a quem o matou. Não por ser polícia e carregar consigo uma assustadora arma, mas porque não pertence aos dessa estirpe. Harry pode ser um porco fascista na medida em que homens acossados como o Stanley White de Michael Cimino, o Travis Bickle de Martin Scorsese ou mesmo o Walt Kowalski do próprio Clint Eastwood o podem ser numa consideração primeira e simplista, maniqueísta; ou podem ser humanistas, sim humanistas!, numa Via Crúcis rumo a uma catarse essencial, a uma limpeza, coisa extrema só pertencente ou passível de ser compreendida a quem muito suportou de insuportável, a quem se fodeu muito, a quem muito se escaldou face a tanta maldade presenciada, um certo cúmulo de quem tem a vista ferida pelo nojo, baixarias, terror a que um ser neste mundo pode chegar sabe-se lá porquê, a liberdade e o terror de quem nada tem a perder.
À brutal raiva das acções destes cavaleiros corresponde um amor de idêntica escala que para sempre agredido jamais se poderá deixar de manifestar em jorros de furores mortais. A dada altura, quando alguém lhe pergunta o significado do adjetivo Dirty que o polícia ostenta como alcunha, uma resposta que é uma das chaves das suas brumas e o dínamo que o faz correr: “...ele não tem favoritos. Odeia-os a todos. Negros, gordos, magros, egípcios, é só escolher. Seja quem for." Isto é, quem odeia toda a gente não odeia ninguém, tal como quem tudo perdoa banaliza a questão e no fundo não deixa de não perdoar nada. A moral como a razão, a noção de valor, o juízo, a vontade, sempre foram conceitos e visões complexas e de costas largas, o que precedentemente foi possível certo dia posterior é já impossível; o Ethan Edwards colecionador de escalpes porque um dia viu uma boneca a arder e não o suportou, a ferida jaz aberta e os mortos acumulam-se. Em coisas assim tamanhas e escapáveis, em olhares assim cravados e profundos e em semblantes desse modo fechados, ambíguos e com todos os mistérios resguardados, há que tentar perceber que para assim se ser uma lança das compridas e das que perfuram além crenças e credos foi a dado tempo e em dado lugar espetada e não mais cicatrizada. Harry como outros possíveis Harry`s está paroxisticamente ferido, atingido tal estado, há que esperar toda e qualquer altercação, explosão, e as leis de uns humanos e a as leis de uma sociedade valem tanto como uma bafienta lição de moral de um qualquer bafiento pregador. A personalidade escorrega para o dito mistério e tudo se torna também escorregadio, tudo o que se dá como certo e benigno.
Consequência de certa lixeira deste habitat, claro, mas consequência sobretudo da paixão por uma mulher. “Dirty Harry” é fundado e só existe como e por uma história de amor. História de amor calada, abafada, a trabalhar nos fundos de uma alma e a queimar para eternidades, em surdina, em elipse e nos espaços of e nos olhos profundíssimos e se quisermos tão comoventes de Harry, o Dirty. História de amor para lá do túmulo, muito…uma das mais bonitas de que me lembro em filmes ou no resto. Uma Hitchcock ou uma Truffaut…uma Henry James…uma…
E para que assim seja, para que Don Siegel diga amém com Harry e com todos os assim estilhaçados às tripas e aos nervos, não se cai em fantasias ou no santo resguardo do papelão e da intrujice. Neste périplo em não tão negativo Santo Agostinismo, em que o tal Dirty Harry precisou então de crer numa série de coisas de antemão para fatalmente por meio da acção tentar compreender, a pulsão realista do realizador, a pulsão vital, o abismo pelo que se vê e experimenta, essa urgência avassaladoramente assente nos cheiros, no putedo e no bichedo, anjos e assassinos e anjos assassinos, nos passeios de lixo e de fezes, nas cores que escondem e que berram, etc, vai sempre andar e chegar em primeiro do que qualquer estrutura narrativa de argumentista. Atração, repulsa… Os espaços e tinta da luz vão sempre irromper vibrantemente e em retardamento da sacrossanta estória ou historieta; o facto vai ser superior à derivativa ou etérea poiésis e assim brotar uma poiésis outra aqui ordinária, despida, essencial. Nada de admirar, embora aqui se atinjam radicalismos sobre o escuro e sobre o ontológico que envergonha e reduz a pó noventa e nove por cento do documentarismo de algibeira que inundou nos últimos tempos os festivais, mostras e meios do cinema; visto que já era assim na perna cortada em “The Beguiled”, o excesso de realismo e languidez apenas eram o resultado simples e complexo de olhar compulsivamente de frente e chegar a uma dimensão outra que não a maquiagem; nas perseguições em directo e transcendidas pela arte da montagem no “Madigan”, enfim, entre mais mil exemplos, as discotecas de crua e cegante luz para dentro da objectiva em “Coogan's Bluff”; o manual de evasão que constitui “Escape from Alcatraz” do primeiro ao último fotograma; toda a pérfida instalada no humano desde o berço, da origem, que é centro e periferia de cada obra.
Reprodução do que olho, atracção, recuo, medo. Rugosidade – deixar que a violência, a riqueza, densidade e complexidade do mundo fira a pelicula e a encharque. Que me fira a vista também. Vamos tão perto, tão cerrado, tão em cima, apagámos. Ícaro sem aura, desconsagrado. A relevância e primazia ao ar, à fibra, à atmosfera e à música do presente intacto, rude, pleno de cada momento, de cada cena; estados que explodem, excedem, se prendem ao quadro fílmico; Se falei em música que se diga que esta ainda nada tem a ver com notas ou composições, sim com os cintilamentos, florescências, noturnos, opacidades, ruídos, deambulações, embalos e rupturas do que está nas superfícies e nas profundidades de campo e constituem cada coisa por si, movimentos e reciprocidades entre os diversos componentes das matérias; então, música concreta do mundo; quanto à outra, à de Lalo Schifrin, sonoridade perfeitamente em sintonia clássica com o visível, sonoridade que tem o efeito e a função de solda entre blocos, mas também de despertar de conflitos e interjeições entre elementos, nesse sentido, perfeitamente concreta também, e tão crucial como por exemplo Bach ou Mozart para um Ingmar Bergman, esqueçam-se as hierarquias, pergaminhos e actas de certos doutandos, veja-se o que cada coisa anima. Depois deste aparte, o escuro, o referido escuro onde tanto “nada se vê”, esses raspamentos ao negro, quase negros sobre negros ou brechas mínimas sobre escuridão total que não o do diafragma maquinal mas sim o crepúsculo da terra, que mais do que uma recusa à luz do cinema e às lanternas mágicas iniciais são então avidez louca do retrato em primeiro grau, apostolado do olho à máquina e dessa maneira o maior dos cânticos à própria máquina; nem se trata de anarquicamente apagar a luz, trata-se sim de não a acender – gesto de fidelidade e paixão; kamikaze e generosidade da altura dos olhos e da potência e perigo de se juntar dois planos, duas castrações ao cosmos. Não há volta a dar.
Pulsão de registo, como quando Harry e a mulher do parceiro atingido descem as escadas de um centro de recuperação: a fogosidade analítica como a um tempo temos as linhas e fugas e ornamentos de uma arquitetura espacial e também a tensão de dois corpos e estados de alma nesse lugar, fechamento espacial e abertura espiritual. A correria imposta pelo demente (demente que não falarei mais dele, muito menos o tentarei escrutinar, porque por mentes e terrenos assim, não ouso imiscuir a caneta nem as minhas botas, tal como o realizador, que com a sua classe, também não.) a Harry sobre jardins, becos e altos de São Francisco: um mapeamento perfeitamente lúdico e preciso de uma cidade e uma descida aos abismos demoníacos de um inferno pessoal, geral, abarcante. O que está de mão dada e de lógica feita com o percurso final do autocarro de crianças, que entre placas de sinalização, vistas panorâmicas como outras tantas poderosas que fenderam o filme, melodias e revelações da anatomia dos olhos e da anatomia das tempéries interiores, vão do traçado materialista e urbano ao grande abstrato da existência, com a fluidez, despojamento e secura cortante que nestes tempos só um Siegel desta vida, um Aldrich e depois Clint nos fariam experimentar.
E assim, assim mesmo, o grito lancinante, crepuscular e transformador, aterrador, silente, ao lado das escalas justas, do último tiro. Assim, assim mesmo, a profissão que um homem tem que ter jogada ao rio, circulo fechado, fim, início; afastamento da câmara até quantidades indefiníveis e o resultado ancestral: alguém a uma dada hora perdido numa das incontáveis constelações, sabe-se lá onde. Cada um que vá buscar a sua moral…
Os opostos podem reconciliar-se, o maior dos bens abraçar o maior dos males e o seu oposto, só a mediocridade, arrivismo, hipocrisia, demagogia, é que não? Que acabe agora este mundo, já, porque de certeza começa outro. Tal como o jocoso e muito sério: “Do I feel lucky? Well, do ya, punk?” a roda da vida e a bomba do coração tanto tanto dependem. Um novo filme ou uma nova vida estão prestes a (re) começar; ou então não, pois tais como certos anticlímaxes ou certos animais persistentes e de hábitos feitos dificilmente mutáveis, há também tipos que nunca quebram. Inteligências de Siegel.

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