quarta-feira, 7 de outubro de 2015



"A violência é uma doença causada pelo colapso social e moral, é esse o problema real. E deve ser resolvido pela razão, não pelas emoções. Com compreensão, não com ódio ". "Se as pessoas estão com medo, essa é a medida das vendas de jornais". "Às vezes as pessoas fazem coisas que não querem. Acontece". "Eu posso ver um mundo melhor, um mundo maior. Cada homem carregará as suas responsabilidades. O que semeia é o que irá colher". No mundo em que "The Sound of Fury" se passa tanto o pregador cego como o desempregado ainda mais cego que se afundou pelo desespero da comida e da fortaleza do amor poderiam ter dito qualquer das frases; assim como o anjo conselheiro desse jornalista que certamente quis o Pulitzer ou o patrão queimado na desmultiplicação de pasquins para bens ou males universais as diriam pressionados ou não. O inferno no planeta terra tem muitas formas e passadas a cinema tanto podem ser como os maquinismos abraâmicos e devoradores de grua que em "The Bad and the Beautiful" de Vicente Minnelli unem o máximo de esplendor carnívoro ao máximo de maldade ascética; o hiper-realismo com que Stroheim se aproximou das vidas e das crostas responsáveis em "Greed" para no mesmo instante tudo se diluir no pasmo abstracto e no indizível das razões e das patologias; ou, já que vem à baila Cy Endfield, as ligações e dependências com que se solda e mistura e destrói o silêncio e os gritos na noite longa do mal e da culpa cravada em "The Argyle Secrets".

"The Sound of Fury" é do pós-guerra mas não há luz diferenciada que valha. Passa-se em solo no qual os danados cães vadios ou os ratos vacinados contra todas as doenças e pestes rejeitam. Mas, nessa pasta ignóbil e nesse degredo rarefeito um homem ainda dá a vida por uma família, pelo desabrochar da próxima primavera, perde a razão para a ganhar superiormente, sustem a respiração e o olhar e faz o que tem de ser feito nas margens. Nesse degredo e por esse ar pestilento o mau e o bom são produto da inteligência que os governou. E degredo tanto é uma cabeça esborrachada a sangue frio como a caneta do jornalista que quis ganhar o Pulitzer e condenou os desempregados e amantes e vagabundos mais delicadamente e sem recurso do que um Deus omnipresente. Mas Cy Endfield, o tal condenado e ferrado entre bruxas e encarnado demoníaco na Hollywood pretérita, deixa fluir, subir e convergir o auge de violência e de revolta, para advir a mais secreta redenção e inocência. Quando nem os ratos de esgoto respiram bem na sociedade - 1950 a 2015, guerra, ressaca ou pasmaceira; bufos, trela solta, soporíferos ou abutres sem asas - há perdão para todos os terrestres que forçaram o amor. Perdão para todos menos para os que se tomaram, precisamente, por deuses, deuses da boca esperta para fora, deuses marqueteiros e salvadores da pátria maquiados, compostos e limpos, aqueles que estão no off (ou na fossa) deste terrífico e abençoado filme. Terrífico e abençoado punhal moral. Onde ao sangue se sucede a dor aguda e seca à espera de sangue fresco.

Depois da tempestade, no Paraíso e no Apocalipse, o som vai ter um papel fundamental, o papel das visões trucidantes, justiceiras, inesquecíveis, furiosas - o mapeamento final. O supra-realismo e a fantasmagoria. Jackson Pollock (a dança, a lama, a verdade) e Howard Hawks (o assumir, o caminhar, a verdade). Tinta do sangue da alma e o esculpir do corpo do homem e do seu meio à altura devida. Deixando de lado a mentira do estilo, a bazófia da técnica, ficam os fundos, as intensidades, a natureza. Toda a verdade é um acto irracional, ou seja, puro. "Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus". Em Mateus 18:3, e no estrondo desta fúria do rebaptizado Cyril Endfield. Irracionalmente. Limpidamente.

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