sábado, 24 de outubro de 2015

They Live was a reaction to the Reagan years, but the income inequality, corporate ownership of the media — all of that is more extreme now than ever.

Yeah, it is. You have to understand something: It’s a documentary. It’s not science fiction.

J.C

Em "Rio Conchos" Gordon Douglas utiliza-se subtilmente (nunca pretendendo ganhar ou bater-se sequer com o colosso natural) das gruas analíticas de funda observação de Delmer Daves e potentemente das fundações e construção granítica de Budd Boeticher, para numa caminhada rumo a uma suposta paz no final da guerra civil americana, bons e maus, oficiais e dissidentes, sangue reconhecido e amaldiçoado, reverterem todos os pressupostos, livros de história ou carimbos, transcendendo assim este filme já de 1964, quando o western já tinha fixado o seu núcleo e mito, a um libelo ímpar pela complexidade e carácter singular de cada constituição; de cada um desses homens e da mulher, dos vales, das árvores, rochas, rios e escarpas a unirem o céu. Entre o comandante vacilante que quer subir de posto e um derrotado que perdeu a família toda e só cheira e fala com a morte, a questão da palavra e do olhar nos olhos vai ser fundamental, e aos motivos pessoais e animais vão-se impor, conhecendo o próximo e vendo o que não se deve ver, os motivos comuns, logo revolucionários. Quando os reinícios das guerras estão prontos e a vileza acordou e se acordou, quem viu de cima e de dentro, das gruas e da rocha, vai perceber que urge outro reinício, daí a explosão cósmica que promete outro estado e outra união além bandeira - o sargento e a pele vermelha, finalmente belos seres em conjugação com o animal ferido do fabuloso Richard Boone, e do negro. O mexicano que os tinha acompanhado, ludibriante Anthony Franciosa, afundou-se nos trilhos e desejos ínvios, mas os gestos e a forma como Douglas o protegeu, lembrando Nick Ray a proteger Dancin' Kid e irmãos, também lhe dá razões; como a outros peões num tabuleiro que os suga. O quadro final: desolação, quente e frio, sismos e cercos, caos e condensação, desesperança e o regresso. Círculo detonado, cogumelo, outra vez zero, que alcança e perfaz temporalmente e infinitamente com os círculos apocalípticos de "Acto da Primavera" do Manoel de Oliveira e "The Thing" de John Carpenter - no deserto, no gelo ou em chão sagrado, tudo desemboca no e para o mesmo, descarnando-se as entranhas da categoria ficcional ou efabulatória para se apurarem naquilo que somente foram - puros documentos da estirpe que aí habita. Em boa verdade, uma cantilena do mundo e uma janela aberta. Largo resumo, estado, semente.


1968 e cada vez parece pior. "The Detective" destapa a cortina com um plano estranho, invertido, onde a cidade assoma reflectida no que parece ser um charco pútrido e mal cheiroso; a câmara treme, desarranjada, nada elegante, e só depois se tenta recompor e recompor o panorama, mas não é nada convincente. O segundo plano, parece que não, que já está melhor, mas é tão estranho como, ou mais; o centro é ocupado pelo farol de um carro, corta o protagonista pela cabeça, desenquadra e desequilibra todas as regras e linhas e moral. Frank Sinatra, o detective, entra na esquadra, sabe das novas e dos mortos, conhece o novo comparsa que lhe agradece poder trabalhar com o melhor da cidade, e ele, a estrela, ri-se. Ri-se, e é sobretudo isso que o vai tramar. Não tarda, começa a bater nos seus colegas, a querer saber o que não se deve, acende luzes que deveriam estar apagadas para sempre, tenta aliviar a fossa em esgotos impraticáveis. Ou seja, faz as coisas bem e por isso está obviamente errado. E corre mesmo mal, é trágico. No fim, como no princípio que nada augurou de bom, devolve o distintivo e todas as consagrações pois também ele foi engolido, participou do cheiro putrefacto, duvida que esteve realmente limpo na postura e no ego, ou começa a questionar se isso é possível. Mas nós vimos, tivemos a oportunidade de perscrutar o seu olhar, uma chama do seu interior, e sabemos que ele acreditou - por isso Gordon Douglas tanto fixou a câmara nele, contemplativo. Nele e na fabulosa e desfabulosa de tão dorida Lee Remick, apaixonado ainda - a mais magoada das mulheres, sempre menina, incapaz de não o ser - que por causa de também não saber enganar se vai dar mal. Se estamos imersos numa cruzada à Otto Preminger, nos terrenos de Don Siegel mas também do implacável e generosíssimo Sidney Lumet, se conhecemos bem estes meandros da nossa Guarda Nacional ou de alguns abutres contíguos que em vez de protegerem as pessoas as humilham, o essencial e a ferida vai para o lado intimista desses dois que se perderam de amores quando já tudo tinham esquecido, e talvez o centro seja mesmo Remick, completamente desarmada, ainda mais do que com Elia Kazan. Deu-se mal até conhecer Sinatra, e vai continuar a dar-se assim, vai continuar a não conseguir crescer, dizendo sempre ao que vem. Pode ser que depois de o filme ter acabado eles sejam felizes para sempre, finalmente, largando ele a sua profissão que o devora todo junto com o Whisky, entregando-se ela ao único Homem que a fez Mulher. Mas até ali foi trágico e triste pois deu-se o encontro de dois seres sinceros demais, expostos demais, que preferem matar-se rapidamente pelo que pensam ao invés da morte lenta e penosa e nojenta da dissimulação necessária aos tais adultos reconhecidos. O mundo, a sociedade, as políticas, as pessoas, estão tão habituadas a que só se entregue um bocadinho da verdade para limpar almas e consciências, um bocadinho de elixir que lave o fedor só um instante, que não admitem o gesto completo - duas pessoas, o par, os amantes, absolutamente nus, eles, questão de carácter e sangue, é escrupulosamente escandaloso e proibido. No mundo, nos jornais e telejornais, discursos e plateias, só admitem meias-verdades, admitem um par em que um é bom e outro mau: Sinatra e Remick estão perdidos. Finalmente, os dois fundem-se ainda com os tantos fatalistas que habitam e se consomem por esse chão magnético, gente que não se domina, gente sugada e irresponsável, sempre a dizer da boca para fora a sua impossibilidade e sendo isso, assim dolorosamente, a prova do seu brio. Menos por menos fizeram dar mais e a equação cientifica é prova de facto. Rezemos para que depois de sermos largados do filme tudo se resolva bem, revolucionariamente. E que o tal arco-íris que tudo abrange e mascara e salva o mal, possa conhecer um pouco de apocalipse. Sinatra a desabafar que a psicologia ajusta os frágeis a um mundo patológico... Quanto à outra mulher, também meio escangalhada e a pedir salvação, Jacqueline Bisset aparição, bastava mais um milésimo de segundo de fixação da alma, e acontecia entre eles, mas Sinatra seguiu em frente. O último plano é um homem em direcção às luzes da cidade, atirando-se ao desconhecido, calmo e sem travões. Rezemos por ele.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015


Há belas cenas no "The Unforgiven" a que John Huston se lançou por 1960. Um irmão a tirar as botas ao outro para um banho merecido no rio como um duelo benigno na poeira; a suposta irmã a correr para esse irmão nu que ama e os dois a ficarem um nessas águas resplandecentes como os firmamentos e os véus que tudo vão cobrir de mistérios durante o conto; Lilian Ghish e Mozart no cansado Oeste como existiu Tombstone e Shakespeare em John Ford, descarnado solo em tempo de passagens e de testemunhos encorpados fantasmagoricamente; o desejo de outros portos, bebidas, toques e finalmente fim da inocência. Mas a progressão vai misturando muitos tons diversos que não são a diversidade e desarmonia da existência diária e partilhada, essa violência do imprevisto, mas sim os apaga-fogos e sopas de cinema que banalizam o peso das questões. Não é dos meus filmes favoritos do portentoso Irlandês que gostava de beber, de ler, de ver e sentir em carne e osso o que lia, de mulheres e de se estar nas tintas; mas tem um crepúsculo sublime que vale tudo, só possível pela arte sinfónica e orgânica como a corrente do sangue que o Cinema pode. É ali, quando já tombaram corpos demais e a raça humana, toda ela, se sujou e humilhou, que uma cruz se forma; uma cruz liberta de significâncias Cristãs ou simbolismos inerentes, mas sim puramente religiosa, no amplo, belo e eterno sentido, a união da carne e do espírito e do amor sem freios. Então, Burt Lancaster, o irmão que descobriu na sua irmã uma pele vermelha e que mesmo assim ficou, junto e acreditando cada vez mais, abraça o outro irmão crente e a irmã que já não o é e continuará a ser; beija-a na boca, numa assunção completa, e o abraço ao irmão vale o mesmo. Todos os dilemas, tensões, degredos, o irresolúvel e irreconciliável dos Westerns e do contemporâneo, ficam sem dínamo e sem razão; envergonhados. Dali, só mais milagres, e tragédias por conseguinte. Outro irmão ainda que se perdeu regressa bem-aventurado e ajuda a uma limpeza que muito mais do que étnica é humana e existencial; e da supra tragédia sobeja um bem e uma claridade a que não há volta a dar; para o bem e para o mal, condenados, mas dentro disso o sol ainda brilha, o céu fica prenhe de radiâncias, a composição e a harmonia renasce; todos eles saem para fora, depois da podridão concentracionária, mortos e vivos relacionados e a participarem na fatalidade da raça humana inteira; fogos e vísceras em combustão negra, o vento a fazer valer-se, presente; um bando de aves a passar, esvoaçantes, absolutamente livres, leves e de um peso incomensurável e inaguentável para as misérias cá de baixo. Todos a olharem para cima, todos que são um, a perceberem tudo e boquiabertos. Soltos e estraçalhados - entre mortos e feridos alguma coisa se salvou. O grande paroxismo - o sagrado com o horrífico em planos alternados, em fusão, diluição, comunhão e negação. O alto e o divino a comentarem o oposto e o sem nome e sem nexo. Quando Porter, Griffith, Chaplin ou outro bravo sem medo do poder da síntese sonhou e concretizou disto, o mundo limpou-se e tremeu apocalipticamente. Huston também se pode ter perdido mil vezes, borrifado mil vezes, morrido outras tantas. Mas, como Peckimpah ou o devorador Ferrara, chegou a esta ponta do caminho e a esta bifurcação, a pressentimentos e visões inescapáveis, e a coisa piou fininho. Gravidade. Luz.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015



À semelhança dos grandes filmes de guerra que tiveram de se fazer e ainda se fazem na América, Leo McCarey, o profundo humanista lúcido que nunca se deixou ludibriar pelos ares e obrigações do tempo, aparências e pressões atmosféricas, realizou a certa altura, quando os cinquenta de Hollywood ainda eram uma criança, um filme sobre o qual se poderiam ter infinitas teorias, acerca das suas políticas e posições, desculpas e redenções, que tudo isso cairia pois a câmara de um verdadeiro cineasta capta as mais ínfimas linhas do rosto, as expressões invisíveis, o nada que tudo significa e que só uma Mãe que teve um filho no ventre percebe num milésimo de segundo ou a milhões de quilómetros. "My Son John", baptizou-se assim, e na expressão mais utilizada e genuína que perdura, o meu filho..., se encerra o que está em causa. McCarey observou no alucinatório e pegajoso clima da sua nação a narrativa mais lamentável que se pode conceber, a da falsidade; o que não é a tentar fazer as vezes do que já foi e haveria de continuar a ser. Para não retirar qualquer tipo de lição de moral ou de aviso: não se trata de defender o patriotismo, como não se defende a religião cega, nem a obediência, nem mesmo o sangue. O que se defende é então esse irrisório e ingénuo sorriso, esse sopro da alma que em vez de se resguardar se mata a certa altura no caminho, sem notarmos. Se alguma coisa se defende ou se pergunta mesmo, é onde jaz o teu sorriso?

A família de "My Son John" tem a Mãe, o Pai, e três Filhos. A Mãe e o Pai como que já cumpriram a sua missão e acreditam nos tantos amanhãs dos seus filhos, para serem o centro emocional da casa, serenamente e activamente. Dois dos filhos, os desportistas, estão no campo de batalha, que faz lembrar e não faz o futebol que veneram. John, o do título, estudou mais e veste fato e gravata, preferindo exercitar o cérebro aos músculos. Regressa a casa, disponível e de boa vontade, mas é daqueles que não podem regressar mesmo, queimado em chamas indomáveis; meninos aos quais Nick Ray e Thomas Wolfe dedicaram suor, lágrimas, derrotas e humilhações. Almeja revoluções e a salvação, o tudo e o vazio, e não consegue afastar a sombra e a fachada inerentes. Embate com o Pai que acredita nos valores da bandeira e do hino, deixa a Mãe de rastos pois nota que ele já destrinçou as bolachas e os biscoitos de Lucas ou de Mateus, não lhe trazendo isso paz alguma. Inevitavelmente, no momento mais fechado de um filme de quartos e salas, logo depois de ela ter notado o campo de batalha do rosto dele, Filho e Mãe descobrem que acreditam nas mesmas coisas, e que se essas coisas não tivessem sido viciadas e sujas pelos ventos e esgares da História, tudo continuaria no mesmo lugar. Mas descobrem talvez tarde demais, o espectáculo dos homens e a sua perene maquinação já tratou de baralhar o que merecia ordem. Para tudo isso ser mesmo assim, sem tabuletas, os embates e as decisões em marcha e em urgência, abissais porque se vêem e dão mesmo, de onde naturalismos cinematográficos, muito menos realismos, não procedem. Tal encenação, tal ritmo, cortes ou enquadramentos, estão lá antes de qualquer frieza demiúrgica e planificação, inteiros. Trata-se de auscultar, olhar, tactear de mansinho ao mesmo tempo que se fixa.

Da Mãe que era a namoradinha dos filhos, do Pai que era outro irmão e filho e amante, do Padre e do médico e do resto como extensão lógica, vão ficar cada um para seu lado, sem acordo nem causa nomeável, e percebe-se que se o tal vento não trouxesse comunismos ou fidelidades absolutas a provar, traria no seu vórtice qualquer outra da semente perpétua do mal que urge não ceifar. A metafísica final e derradeira, discurso sem corpo, divino sem anunciação, luz sem explicação, é finalmente uma cena tão materialista e nítida como os confessionalismos e rememorações dos quartos e salas e corações. E só tem ligação com a anti-metafísica dos poderes telepáticos maternos, que se aguçam com a disseminação da tragédia. Sem redenção, sem guinada ideológica, sem traição. Se alguma coisa se poderá dizer que fala à transcendência, para além de que todos eles estão salvos pois suplicantes no amor sem amarras, é a tal invisibilidade na voz que guarda a melodia dos sorrisos inocentes. Como o que aparece pelos olhos de John na hora imprevista da morte - Robert Walker foi o mais breve e magoado dos actores e dos seres dessa época, concentração profunda da impossibilidade e da entrega sobre a mais exposta superfície. Eu amo-te, eu perdi-me. John emula-se para que todos possam ainda escolher; ou para não matar a sua Mãe, a mais bela. Nos esfumamentos mudos já além vida, como John a não aguentar o choro original, os planos e os corpos e a película ardem clamantes. Clamantes de outra vida. Longe, bem longe de qualquer comício terráqueo, "My Son John" é um dos mais belos e tristes filmes alguma vez feitos, cúmulo da máquina de comoções e revelações onde foi permitido, porque o imenso fica reduzido a uma imagem ou a um sentimento breve, como a estrela cadente e a intensidade dessa passagem fugaz, comportando tal os séculos e séculos. E nesse brilho, tudo o que há para dizer. No rotundo, côncavo, contraditório, recto, a luz inexplicável, que se sente ou não. Que derrete qualquer retórica ou bandeira do mal. A luz. Luz que deixa a cada um perceber o que interessa.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015


"House of Strangers" raspa a preto e a branco e um homem sai da prisão, não por ter morto outro homem ou coisa parecida, sim por causa do seu Pai e dos seus três irmãos, do Banco milionário e anárquico dessa família, da importância de cada um e, claro, do dinheiro. Max, o irmão estampado na desgraça, foi sempre o favorito do falecido Pai - chefe à antiga, complexo e de justiça bem mais sofisticada e primária do que à primeira vista pode parecer - e largado à bicharia, clama vingança por todos os poros. Esses, os irmãos, ou os estranhos, como arruma o sucinto título, nunca perceberam que o Pai agiu segundo a natureza e a atitude de cada um; que se aproveitou da terra prometida e da liberdade como o canino esfomeado que acha um pasto de ossos; e tenham alguma ou nenhuma razão, decidem fazer-lhe a folha. Só que.. um homem que deita o dinheiro no lixo, é um problema. Um problema. De rajada, Max vai ver como estão os antigos lugares e afectos, começa a perder-se por corredores, túneis, vazios, ciclones, o tempo desenrola-se. Longa recordação que ocupa quase toda a duração do filme. Mas não toda a tensão. O presente continua em grande-plano, e depois de o passado lhe passar pela cabeça e pela alma, como dizem que passa tudo ligeiramente antes de se morrer, torna-se novo. Vê, entre tantas coisas inadivinháveis, que ninguém teve culpa e ninguém teve desculpa, verdadeiramente. E a escrita do genial e subtilíssimo Philip Yordan jorra descontroladamente, os jogos de palavras que são tudo menos jogos, despistes e feridas, coisas certas com palavras erradas e o seu oposto, a propensão sempre falha do confronto verbal em demonstração. Nessa massa de dizeres, olhares, prenúncios, bailados, dito e não dito na sombra e na luz, nasce; como assim só e tanto se nasceu no Cinema Americano passado.

Max toma a mais radical das decisões e dos volte-faces: do homem que atira o dinheiro para a lixeira, volve-se o homem que ama o que importa amar: a mulher que o esperou: torna-se Ele, como a Mãe um dia disse ao Pai que sentia saudades: sermos apenas nós no nosso cantinho. E a moral, o gesto, ou se tornou atómico e tudo levou, ou pelo menos salvou um. Belíssimo final, trágico e ruminante. Joseph L. Mankiewicz, o sonhador e desbravador por uma arte total - imagem e som e palavra e sentimentos a valer o mesmo - concentrou aqui a história na íntegra, dos amantes primeiros até Caim e Abel, dos Imperadores das arenas até aos Colombos, aquela Nova Iorque de todos e a Itália deles, dos Donos do Mundo até Rimbaud. Tudo isso ele faria depois coralmente e cosmicamente, mas já se encontra aqui, 1949, em documento e em ideal ultra concentrado no quadro final - esse horizonte incandescente e o confronto com ele. Total e íntimo, incompreensível e luminoso, estilhaçado e pacificado, como a Cleopatra.

terça-feira, 13 de outubro de 2015


Há alguns homens neste mundo... que nasceram para fazer todo o trabalho desagradável. É o trabalho do fundamental Atticus Finch, pelo fundamental Gregory Peck, no mais belo e árduo dos contos de fadas tecidos por Robert Mulligan. E esse trabalho não é sobretudo a defesa de um negro inocente no Sul dos Estados Unidos da América vencido, decadente, ruinoso. Então, a luz que cai e plana no espaço é translúcida, a veludo, quase mágica. Os movimentos da câmara precisos, atentos, serenos. E os seres e as coisas surgem animados pelo seu fogo e pela sua natureza singular; mas nítidos para que se vejam realmente como deve ser. É dessa matéria o seu som e a sua fúria.

O trabalho desagradável tem a ver com os conselhos que Atticus - que nome... que alcance... - nunca impregna nos filhos, preferindo sentar-se com eles no banco das futuras recordações lunares e contar-lhes do que soube, do que viu, o que trilhou. Tem a ver com o fazer companhia ao negro na porta da prisão, dispensando tudo o resto e acatando o relento, para além da mera defesa; assim como passará a noite inteira, estacado, de graça, ao lado do filho ferido e com outro no colo. Pela manhã, estará lá. Ficou. Assim como permitiu, na elevação e na tomada de posição mais dura e fácil de todas aquelas estações, que a cotovia continuasse a dar-nos música também de mãos desinteressadas. A cotovia que velada, escondida, sentinela generosa e violenta, saiu do casulo na hora grave e deu vida. Raridade que pode ser cada qual, em cada lado, a qualquer altura. Uma simplicidade e uma inteireza que só assim não é regra porque se foi preferindo não escutar o coração, o único juiz necessário.

Poesia, melodia, oração, justiça, conto de fadas. Quando ciclicamente nos esquecermos - na sala de estar, numa esquina dos encontros, num parlamento - que a essência está no interior, nos sentimentos, na união, e não no poder exterior a todo o custo e sujidade, esta obra central - porque redimensiona tudo, focaliza tudo, repõe tudo - voltará a meter-nos no devido lugar. "To Kill a Mockingbird", do momento e da posteridade, assim se chama. Com varinha mágica e estômago, de ternura e de aço.

domingo, 11 de outubro de 2015



"Nightmare Alley" é um filme devastador e magnânimo na pura descrição das acções e dos intentos humanas, em 1947 quando saiu a ferros ou naturalmente, hoje remasterizado nas altas definições, ou muito muito antes de o cinema ter sido inventado ou sonhado. Edmund Goulding, o realizador no comando, meteu lá dentro todas as suas obsessões e práticas carnívoras, ideais, realidade e diluição. Jules Furthman, com a sua pena que vislumbrou e alumiou Paraísos Infernais nas alturas e amplitudes dos anjos ou duelos com amizades e justiças no velho Oeste, foi ao fundo dessas experiências todas para tocar no fundo de tudo. Dessas raças e estirpes que parecem ter estado onde a maioria dos outros não estiveram, e por aí terem feito e sentido esse invulgar. Um filme, literalmente, omnívoro.

Entre tantas mulheres, terrenos, alta e baixa sociedade, visco e champanhe, libido e bílis, a figura omnipresente e omnipotente é a de Stan, Tyrone Power possuído ou ludibriado na tal impossibilidade lógica. Do seu pequeno carnaval original, esperto e honesto nessa desimportância do truque e do amador, vai entrar por esses proibidos vórtices devoradores onde alguns se deixam apanhar e cegar na luz incompreensível do domínio universal e da metafísica prodigiosa que prometem o absoluto. Se está na sua natureza e se ele é mau por excelência, ou se foi o mundo mau que o perfurou e moldou, ou não interessa pois nunca o iremos saber ou é tudo a mesma coisa. Mas já o sabíamos, tipos como Goulding e Furthman provaram da perdição e da desgraça, do chamamento incaracterizável que só pode ser calcinado na superação pelo absoluto contrário, e não têm medo de o contar.

Finados os horrores e os traumas da guerra quente ou fria, do medo e das lobotomias várias, Stan agarra e representa o ciclo vicioso sempre a nós prometido, e no seu dia-a-dia, no seu modo de vida, no seu caminho, explora outras pequenas guerras, extermínios, revelando e desadormecendo a potência monstruosa que sofisticamos nos séculos e séculos de inteligência e poder. Na sua ânsia da mulher perfeita, do palco perfeito, do brilho mais feroz, chega-se ao lado dos segredos mais aterradores, dos sepulcros que deveriam feder, violando-se silêncios arredios. O ar do tempo e o lixo no solo não permitem mesmo destrinçar o Bem e o Mal, mas os da mesma laia, morfologia ou esses possuídos reconhecem-se, como se reconhecem os charlatões, os idiotas e os destinados. Stan encontra uma sua igual e cega-se cada vez mais, quer dizer que depois de tanto subir terá de cair mesmo a pique, em cheio, a seco, estremunhando Deuses e Monstros. Os da raça imparável, da inteligência infinita, sementes e desenvolvimentos contíguos e inelutáveis. Primeiro foi o céu, depois a danação. E tanto estremeceu e se compôs o circulo que atrelamos outra vez ao princípio dos seres, traçado e mensura, selva, pré-história cósmica. O final, o eclipse, é Adão e Eva provadas tantas outras tentações. E o Cinema serve para isto, devastação e ressurgimento, aurora. Dali, todos os percursos e paixões abertas. Goulding e Furthman, da generosidade.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A história está cheia de falsas partidas, já se sabe. Naquele fim de tarde de 1967 ou 8, no imenso cinema Monumental, a sala estava cheia e nenhum daqueles milhares de rapazes e raparigas tinha paciência para as dores de amor retratadas no filme, rebentavam gargalhadas como foguetes em noite de são joão. Lembro-me de ter descido a Fontes Pereira de Melo com o Ruy Belo, o Joaquim Magalhães e creio que o Rui Dinis a rir perdidamente do "pior filme de sempre". Pois foi. Imagino que depois, pela calada, cada qual foi rever e chorar sozinho, para que mais ninguém nos visse assim, olhos vermelhos, sentimentais. Uma manhã, meses depois, o Ruy, tímido, na Pilar (em frente à Buchholz) disse "sabe que voltei a ver aquele filme..." "Ah, eu também, - aliviado, podia confessar! -Ruy e é tão lindo." " E até escrevi um poema..." E li o poema do Ruy sobre o "Esplendor na Relva"...

Jorge Silva Melo, fb

quarta-feira, 7 de outubro de 2015



"A violência é uma doença causada pelo colapso social e moral, é esse o problema real. E deve ser resolvido pela razão, não pelas emoções. Com compreensão, não com ódio ". "Se as pessoas estão com medo, essa é a medida das vendas de jornais". "Às vezes as pessoas fazem coisas que não querem. Acontece". "Eu posso ver um mundo melhor, um mundo maior. Cada homem carregará as suas responsabilidades. O que semeia é o que irá colher". No mundo em que "The Sound of Fury" se passa tanto o pregador cego como o desempregado ainda mais cego que se afundou pelo desespero da comida e da fortaleza do amor poderiam ter dito qualquer das frases; assim como o anjo conselheiro desse jornalista que certamente quis o Pulitzer ou o patrão queimado na desmultiplicação de pasquins para bens ou males universais as diriam pressionados ou não. O inferno no planeta terra tem muitas formas e passadas a cinema tanto podem ser como os maquinismos abraâmicos e devoradores de grua que em "The Bad and the Beautiful" de Vicente Minnelli unem o máximo de esplendor carnívoro ao máximo de maldade ascética; o hiper-realismo com que Stroheim se aproximou das vidas e das crostas responsáveis em "Greed" para no mesmo instante tudo se diluir no pasmo abstracto e no indizível das razões e das patologias; ou, já que vem à baila Cy Endfield, as ligações e dependências com que se solda e mistura e destrói o silêncio e os gritos na noite longa do mal e da culpa cravada em "The Argyle Secrets".

"The Sound of Fury" é do pós-guerra mas não há luz diferenciada que valha. Passa-se em solo no qual os danados cães vadios ou os ratos vacinados contra todas as doenças e pestes rejeitam. Mas, nessa pasta ignóbil e nesse degredo rarefeito um homem ainda dá a vida por uma família, pelo desabrochar da próxima primavera, perde a razão para a ganhar superiormente, sustem a respiração e o olhar e faz o que tem de ser feito nas margens. Nesse degredo e por esse ar pestilento o mau e o bom são produto da inteligência que os governou. E degredo tanto é uma cabeça esborrachada a sangue frio como a caneta do jornalista que quis ganhar o Pulitzer e condenou os desempregados e amantes e vagabundos mais delicadamente e sem recurso do que um Deus omnipresente. Mas Cy Endfield, o tal condenado e ferrado entre bruxas e encarnado demoníaco na Hollywood pretérita, deixa fluir, subir e convergir o auge de violência e de revolta, para advir a mais secreta redenção e inocência. Quando nem os ratos de esgoto respiram bem na sociedade - 1950 a 2015, guerra, ressaca ou pasmaceira; bufos, trela solta, soporíferos ou abutres sem asas - há perdão para todos os terrestres que forçaram o amor. Perdão para todos menos para os que se tomaram, precisamente, por deuses, deuses da boca esperta para fora, deuses marqueteiros e salvadores da pátria maquiados, compostos e limpos, aqueles que estão no off (ou na fossa) deste terrífico e abençoado filme. Terrífico e abençoado punhal moral. Onde ao sangue se sucede a dor aguda e seca à espera de sangue fresco.

Depois da tempestade, no Paraíso e no Apocalipse, o som vai ter um papel fundamental, o papel das visões trucidantes, justiceiras, inesquecíveis, furiosas - o mapeamento final. O supra-realismo e a fantasmagoria. Jackson Pollock (a dança, a lama, a verdade) e Howard Hawks (o assumir, o caminhar, a verdade). Tinta do sangue da alma e o esculpir do corpo do homem e do seu meio à altura devida. Deixando de lado a mentira do estilo, a bazófia da técnica, ficam os fundos, as intensidades, a natureza. Toda a verdade é um acto irracional, ou seja, puro. "Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus". Em Mateus 18:3, e no estrondo desta fúria do rebaptizado Cyril Endfield. Irracionalmente. Limpidamente.